A cena é assim ( quase escrevi “foi assim”. Corrigi-me a tempo. As cenas da alma não têm passado. Elas acontecem sempre no presente ). Eu e o meu filho de três anos estamos na sala de estar da nossa casa. Só nós dois. Havíamos terminado de jantar. No sofá, sua cabeça está deitada no meu colo. É a hora de contar estórias, antes de dormir. Aí ele me diz: “Papai, põe o disco do violão...” Levanto-me e pego o disco. Tomando toda a capa, a figura de um violino. Mozart. Ponho a peça que ele mais ama: “Uma pequena serenata”. É impossível não amar a pequena serenata... Quem poderia resistir à tentação de voar que ela produz? Pode ser que o corpo não voe. Mas a alma voa. Ouvir a “Pequena Serenata” é uma felicidade... ( Note que a “Pequena Serenata” é inútil. Não serve para nada. Ela é uma criatura da “caixa dos brinquedos”, lugar da alegria...)
Quando eu me esforçava por exercer a arte da psicanálise ouvi de uma paciente: “Estou angustiada. Não tenho tempo para educar minha filha.” Psicanalista heterodoxo que eu era, não fiz o que meu ofício dizia que eu deveria fazer. Não me meti a analisar seus sentimentos de culpa. Apenas disse: “Eu nunca eduquei meus filhos...” Ela ficou perplexa. Desentendeu. Expliquei então: “Eu nunca eduquei meus filhos. Só vivi com eles...” Ali, naquela noite, não me passava pela cabeça que estivesse educando meu filho. Eu só estava partilhando com ele um momento de beleza e felicidade. E se a Adélia Prado está certa, se “aquilo que a memória amou fica eterno”, sei que aquela cena está eternamente na alma do meu filho, muito embora ele tenha crescido e já esteja com cabelos brancos. Parte da alma dele é a “Pequena Serenata”, o disco do violão... E por isso, por causa da “Pequena Serenata”, ele ficou mais bonito...
por: Rubem Alves
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